domingo, 11 de maio de 2014

Heteronímia em Fernando Pessoa


A palavra Heteronímia é formada por heteros=diferente e ónoma=nome, e estuda os autores fictícios que possuem personalidade própria, porque, ao contrário de pseudónimos, os heterónimos constituem uma personalidade. 
O criador do heterónimo é chamado de "ortónimo", assumindo as outras personalidades como se fossem pessoas reais.
O maior e mais famoso exemplo da produção de heterónimos é Fernando Pessoa. Considera-se que a grande criação estética de Pessoa foi a invenção heteronímica que atravessa toda a sua obra.
Entre os heterónimos, o próprio Fernando Pessoa passou a ser chamado ortónimo, porquanto era a personalidade original. Entretanto, com o amadurecimento de cada uma das outras personalidades, o próprio ortónimo tornou-se apenas mais um heterónimo entre os outros.
Os três heterónimos mais conhecidos, e com maior obra poética,são Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Um quarto heterónimo de grande importância na obra de Pessoa é Bernardo Soares, autor do Livro do Desassossego, importante obra literária do século XX.
Bernardo é considerado um semi-heterónimo por ter muitas semelhanças com Fernando Pessoa e não possuir uma personalidade muito característica, ao contrário dos três primeiros, que possuem até mesmo data de nascimento e morte (excepção para Ricardo Reis, que não possui data de falecimento).

1 - No poema “Autopsicografia”, Fernando Pessoa apresenta a criação estética como um processo de intelectualização de emoções sentidas: o leitor não tem acesso à dor sentida nem à dor fingida, mas só à dor escrita, só ao poema, susceptível de gerar emoção estética. Noutro texto, considera que o grau máximo do poeta seria aquele que fosse “vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica” (tal como um autor cria as personagens do seu romance, o poeta dramático criaria as personagens, não de um romance, porque não teriam acção efectiva, mas da sua poesia lírica - ou seja: vários poetas/heterónimos, várias expressões líricas). O progresso do poeta dentro de si próprio realiza-se pela vitória sobre a sinceridade, pela conquista da capacidade de fingir. Poderemos, pois, inferir dos poemas “Autopsicografia” e “Isto” que a heteronímia surge como parte desse processo intelectualizante.
Nas palavras de Pessoa: “ Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria. Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados.”
           
2 - «Fernando Pessoa passa a escrever em seu próprio nome e em nome destas personagens que são emanações suas, mas a que atribui (sobretudo a Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos) uma biografia, uma personalidade, um pensamento, um estilo. A origem mental dos heterónimos, diz na bem conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro, está na sua “tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação”.
Mas devemos considerá-los pelos menos em dois planos distintos: o plano interior, isto é, correspondente à cisão da sua vida psíquica ou à coabitação, nela, de diferentes personalidades virtuais; e o plano projectivo, ou seja, o desejo de intervenção de Pessoa na dinâmica do grupo e na vida social e cultural portuguesa.
Quanto ao primeiro, estamos em presença de uma navegação íntima, à procura do “graal” da sua alma, ou da verdade última que ela é, para além das suas diversas inclinações, ou antes, para além das “Máscaras” ou das “personas” que encontra dentro de si, por vezes diferentes ou até contraditórias. Sob este ponto de vista, a obra de Fernando Pessoa procura responder àquela pergunta original de todo o homem atento: quem sou eu? E ainda: que é ser eu?
(...)Fernando Pessoa envolve-se então numa (inegualada na literatura universal) procura da sua própria identidade. Órfão do pai e desgarrado da mãe, temeroso da entrega ao sentimento amoroso, solitário e privado da consolação familiar, o poeta é um homem vazio que, no seu desamparo, cria um mundo para descobrir a sua verdadeira identidade».  [Bibl.]

3 - «Mas há nos heterónimos um segundo plano, que é o da projecção para o exterior, o da provocação ao sossego habitual da atmosfera lisboeta, o da adesão à inquietude desses anos em que o modernismo e o futurismo lançam o ataque final contra o século XIX romântico e neoclássico, puritano e espartilhado, enfim uma crítica indisciplinadora a que não é indiferente a sua torturada ansiedade patriótica.
(...) Pode imaginar-se a influência que uma tal explosão de inventividade terá tido sobre os companheiros de café e de tertúlia na Lisboa do tempo... Encontram-se na verdade perante uma visível manifestação de génio, acentuada pelo carácter tranquilo e um pouco misterioso de Fernando Pessoa que, para lá do pouco que dizia, se calava longamente em silêncios intrigantes. O próprio poeta acentua este clima de mistério ao brincar com os amigos ao jogo dos heterónimos, procurando impô-los como pessoas verdadeiras, que discordam entre si ou que até criticam o próprio Fernando Pessoa. Há aqui uma faceta lúdica, que vai a carácter, aliás, com uma certa dimensão infantil que Pessoa sempre conservou.»   [Bibl.]

4 - Em síntese, razões plausíveis para a existência da heteronímia pessoana:
- a “tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação”;
sentimentos de solidão e dispersão, falta de unidade do eu, (as máscaras);

- o fingimento como processo de criação poética, pelo domínio da razão sobre as emoções;

- uma intensa vida interior, um sentido de busca do absoluto;

- uma faceta lúdica de reminiscências infantis;
- alguma irreverência e provocação futurista no ambiente cultural e literário da sua época.

5 - Afirmou Fernando Pessoa: “É sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito de vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.”   
Se, por um lado, os diversos “Pessoas” são diferentes entre si, por outro, são todos eles contemporâneos, enquadrados nas correntes europeias da época e sofrendo idênticas crises de valores e de consciência.
Com Fernando Pessoa ele-mesmo, todos partilham o paganismo, a dor de pensar e o regresso à infância como a idade ideal (em Reis, o “adulto criança”). Pessoa e Reis encontram afinidades na estética neoclássica e na intelectualização das emoções. Pessoa e Campos assemelham-se na fragmentação do “eu”, na dificuldade ou impossibilidade de relacionamento com os outros, na evasão no sonho, nos sentimentos de tédio, abulia, cansaço; sentimentos que também são evidentes na poesia de Reis, pela sua descrença e demissão da vida.
Com o “mestre” Caeiro, aprenderam o valor da realidade exterior, presente e concreta, apreendida ingenuamente pelos sentidos; mas em Reis, além do sentir, também há a aceitação do pensar, como partes integrantes do Homem e uma importância concedida à Razão como disciplinadora do corpo e da mente; Campos diferenciou-se de Caeiro, na substituição da realidade exterior bucólica pela tecnológica, na apreensão subjectiva das sensações (não a sensações das coisas como são mas a sensação das coisas conforme são sentidas) e no desejo indisciplinado de querer viver todas as sensações de todas as maneiras.

A título de curiosidade, publica-se, em ordem aproximada de criação, uma listagem incompleta das personalidades criadas pelo Poeta:.

01. Dr. Pancracio - jornalista de A PALAVRA e de O PALRADOR, contista, poeta e charadista.

02. Luís António Congo - colaborador de O PALRADOR, cronista e apresentador de Eduardo Lança.

03. Eduardo Lança - colaborador de o PALRADOR, poeta luso-brasileiro.

04. A. Francisco de Paula Angard - colaborador de o PALRADOR, autor de «textos científicos».

05. Pedro da Silva Salles (Pad Zé) - colaborador de o PALRADOR, autor e director da secção de anedotas.

06. José Rodrigues do Valle (Scicio), - colaborador de o PALRADOR, charadista e dito «director literário».

07. Pip - colaborador de o PALRADOR, poeta humorístico, autor de anedotas e charadas, predecessor neste domínio do Dr. Pancracio.

08. Dr. Caloiro - colaborador de o PALRADOR, jornalista-repórter de «A pesca das pérolas».

09. Morris & Theodor - colaborador de o PALRADOR, charadista.

10. Diabo Azul - colaborador de o PALRADOR, charadista.

11. Parry - colaborador de o PALRADOR, charadista.

12. Gallião Pequeno - colaborador de o PALRADOR, charadista.

13. Accursio Urbano - colaborador de o PALRADOR, charadista

14. Cecília - colaborador de o PALRADOR, charadista.

15. José Rasteiro - colaborador de o PALRADOR, autor de provérbios e adivinhas.

16. Tagus - colaborador no NATAL MERCURY (Durban).

17. Adolph Moscow - colaborador de o PALRADOR, romancista, autor de «Os Rapazes de Barrowby».

18. Marvell Kisch autor de um romance anunciado em O PALRADOR, («A Riqueza de um Doido»).

19. Gabriel Keene - autor de um romance anunciado em O PALRADOR, («Em Dias de Perigo»).

20. Sableton-Kay - autor de um romance anunciado em O PALRADOR, («A Lucta Aerea»).

21.Dr. Gaudêncio Nabos - director de O PALRADOR (3.ª série), jornalista e humorista anglo-português).

22. Nympha Negra - colaborador de O PALRADOR, charadista.

23. Professor Trochee - autor de um ensaio humorístico de conselhos aos jovens poetas.

24. David Merrick - poeta, contista e dramaturgo.

25. Lucas Merrick - contista (irmão de David?).

26. Willyam Links Esk - personagem de ficção que assina uma carta num inglês defeituoso (13/4/1905).

27. Charles Robert Anon - poeta, filósofo e contista.

28. Horace James Faber - ensaísta e contista.

29. Navas - tradutor de Horace J. Faber.

30. Alexander Search - poeta e contista.

31. Charles James Search - tradutor e ensaísta (irmão de Alexander).

32. Herr Prosit - tradutor de O Estudante de Salamanca de Espronceda.

33. Jean Seul de Méluret - poeta e ensaísta em francês.

34. Pantaleão - poeta e prosador.

35. Torquato Mendes Fonseca da Cunha Rey - autor (falecido) de um escrito sem título que Pantaleão decide publicar.

36. Gomes Pipa - anunciado como colaborador de O PHOSPHORO e da Empresa Íbis como autor de «Contos políticos».

37. Íbis - personagem da infância que acompanha Pessoa até ao fim da vida nas relações com os seus íntimos que sobretudo se exprimiu de viva voz, mas também assinou poemas.

38. Joaquim Moura Costa - poeta satírico, militante republicano, colaborador de O PHOSPHORO.

39. Faustino Antunes (A. Moreira) - psicólogo, autor de um «Ensaio sobre a Intuição»).

40. António Gomes - «licenciado em philosophia pela Universidade dos Inúteis», autor da «Historia Cómica do Çapateiro Affonso».

41. Vicente Guedes - tradutor, poeta, contista da Íbis, autor de um diário.

42. Gervásio Guedes - (irmão de Vicente?) autor de um texto anunciado, «A Coroação de Jorge Quinto», em tempos de O PHOSPHORO e da Empresa Íbis.

43. Carlos Otto - poeta e autor do «Tratado de Lucta Livre».

44. Miguel Otto - irmão provável de Carlos a quem teria sido passada a incumbência da tradução do «Tratado de Lucta Livre».

45. Frederick Wyatt - poeta e prosador em inglês.

46. Rev. Walter Wyatt - irmão clérigo de Frederick?

47. Alfred Wyatt - mais um irmão Wyatt, residente em Paris.

48. Bernardo Soares - poeta e prosador.

49. António Mora - filósofo e sociólogo, teórico do Neopaganismo.

50. Sher Henay - compilador e prefaciador de uma antologia sensacionalista em inglês.

51. Ricardo Reis - neoclássico, racionalista e semipagão.

52. Alberto Caeiro - o camponês sábio.

53. Álvaro de Campos - futurista, neurótico e angustiado.

54. Barão de Teive - prosador, autor de «Educação do Stoico» e «Daphnis e Chloe».

55. Maria José - escreve e assina «A Carta da Corcunda para o Serralheiro».

56. Abílio Quaresma - personagem de Pêro Botelho e autor de contos policiais.

57. Pero Botelho - contista e autor de cartas.

58. Efbeedee Pasha - autor de «Stories» humorísticas.

59. Thomas Crosse - inglês de pendor épico-ocultista, divulgador da cultura portuguesa.

60. I.I. Crosse - coadjuvante do irmão Thomas na divulgação de Campos e Caeiro.

61. A.A. Crosse - charadista e cruzadista

....e ainda faltam mais uns quantos.

Fontes:


Pessoa Forever
Página Comunitária sobre Fernando Pessoa

  • Esta é uma página de homenagem a Fernando Pessoa que não pretende ser convencional e bem comportada http://navegarcomfernandopessoa.blogspot.pt/2008/10/os-heternimos-ii.html  http://www.prof2000.pt/users/secjeste/dlrc/seucsec/unid12/pg002400.htm

Sem comentários:

Enviar um comentário