terça-feira, 10 de junho de 2014

Aprender a escrever à mão na era do teclado

Memória e criatividade. Escritores e crianças. Professores e alunos. O que é que estamos a perder quando abandonamos o papel e a caneta?
O que muda no nosso cérebro quando escrevemos no computador? Diversos estudos científicos apontam diferenças em relação à escrita no papel. Para descobrir até que ponto a memória e a criatividade são afectadas pelo método de escrita, falámos com crianças, professores e escritores.
Os primeiros “escritos” do homem foram nas paredes das cavernas com a própria mão. Mais tarde, surgiram os pergaminhos, as penas e a tinta. Depois, o papel e a caneta. E agora, os teclados e ecrãs. “[Escrever à mão] faz-me doer o pulso e cansa”, diz Rafael Santos, 10 anos, ao mesmo tempo que segura nas mãos uma consola de jogos portáteis. Esfrega o dedo indicador da mão direita freneticamente no ecrã do aparelho. Estava quase a perder o jogo, conta.
Escrever à mão envolve vários sentidos: o cérebro recebe um feedback das ações motoras, juntamente com a sensação do toque do lápis e do papel. Escrever é um movimento, uma torrente que não para e impede que as mãos estejam paradas, como diriam alguns escritores.
Anne Mangen da Universidade de Stavanger, na Suécia, publicou em 2010 uma investigação que revelava que diferentes partes do cérebro são ativadas quando a visão reconhece uma letra caligrafada ou datilografada. Ao escrever-se alguma palavra à mão, os movimentos envolvidos deixam uma memória na parte sensimotora do cérebro, também conhecida como área de broca, o que ajuda a reconhecer as letras. Isto implica uma ligação entre o processo de leitura e escrita e sugere que o sistema sensimotor tem um papel no processo de reconhecimento visual durante a leitura.
A memória e a criatividade têm uma relação direta com o movimento da escrita, de acordo com um estudocientífico publicado em Abril deste ano. O nome do estudo é, até, sugestivo: “The Pen is Mightier than the Keybord”. (A caneta é mais poderosa que o teclado, em português.)
O primeiro livro escrito à máquina foi o clássico “Tom Sawyer” do americano Mark Twain, publicado em 1876. Desde essa data, não deixaram de surgir grandes escritores por causa de uma mudança tecnológica. Lembremos as imagens de José Saramago, compenetrado no computador a escrever a “Viagem do Elefante”, no documentário “José e Pilar”. De que forma os teclados influenciam o processo criativo dos escritores portugueses?
Pedro Mexia, poeta, cronista e crítico literário, diz que não é correto falar de só “um processo criativo” e distingue o que escreve entre coisas compradas (crónicas para os jornais, por exemplo) e coisas não encomendadas (poemas, textos para o blogue pessoal). Tudo o que é trabalho escreve no computador, pois esses textos têm prazos a cumprir. Já a poesia, escreve no papel. “Fica mais acabado” e é “mais espontâneo”, explica.
A literatura nunca lhe foi um mundo estranho. Desde jovem que começou a escrever. “Foi tudo para a gaveta, ainda não sabia bem o que era a poesia”, diz ao lembrar o início do seu processo de escrita.
Enquanto crítico e cronista, Pedro Mexia vai anotando temas que lhe ocorrem nas mais diversas situações. Às vezes, se estiver na rua e não tiver papel à mão, anota no telemóvel. Mas quando chegar a casa vai passar a ideia para um caderno. Tem de ter ideias em stock para as crónicas que lhe são pedidas. “Não posso dizer que conheça alguém [poeta]” que escreva poesia diretamente no computador, conta. Mas lembra o caso de Vasco Graça Moura que, desde que surgiu o computador, afirmou ter começado a escrever tudo aí.
“Pensar a liberdade é um bom critério para a escrita”, diz Pedro Mexia ao falar da diferença do que é escrever uma publicação para o seu blogue pessoal ou uma crónica para o jornal.
Um post pode ser “mais hermético e obscuro” e uma crónica tem de ser compreensível a qualquer leitor. Mesmo assim, admite, ainda existe uma certa mitologia dos “blocos de notas, caderninhos e do café” ao redor da escrita.
É nesta precisa mitologia que Francisco José Viegas, escritor, jornalista e ex-secretário de estado da Cultura, se encontra. Todos os casos de polícia do inspector Jaime Ramos, personagem central da obra do escritor, foram escritos à mão. Desde o primeiro livro, o método de escrita de Francisco José Viegas tem sido o mesmo.
“As coisas são mais simpáticas quando escritas à mão”, diz. Tudo que é literatura, Viegas escreve à mão. Sai de casa, senta-se numa esplanada com blocos e cadernos e fica a escrever uma tarde inteira se for preciso. Depois de acabado o primeiro rascunho, transcreve o texto para o computador e aí trabalha-o. “Devia haver computadores sem acesso à internet”, diz a rir-se.
Ao escrever à mão, o escritor diz que é obrigado a uma “certa lentidão” para tornar a escrita mais inteligível, o que por sua vez faz com que pense melhor. Francisco José Viegas gosta de uma caligrafia bem delineada, da letra bem desenhada em tinta permanente. Ver uma história crescer numa dimensão diferente da que o livro vai ser impresso é uma vantagem, dá “uma certa inocência”, explica. E é com essa mesma inocência que já o guiou por dezenas de manuscritos, que não se vê a abandonar o movimento da sua mão, da sua força criadora, para um teclado.
Fonte:
http://observador.pt/aprender-escrever-mao-na-era-teclado/

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