quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Da Covilhã para Nacala

Da Covilhã para Nacala, um pouco da minha história de vida presente no livro "Voltar" de Sarah Adamopoulos

Escola Primária de Nacala, 1969.
Os pais da professora de História Olinda Gil são da Covilhã. O pai, contabilista a exercer na indústria têxtil, recebeu, em 1967, uma proposta para ir trabalhar para Moçambique, tendo-lhe sido oferecidas condições remuneratórias excepcionais – qualquer coisa como quatro vezes o que ganhava em Portugal. Apesar da sua mulher se encontrar grávida, o pai de Olinda aceitou partir para Moçambique ainda no decorrer desse ano de 1967, pensando assim que seria mais sensato o nascimento do filho ocorrer em Portugal, e que, depois disso, a família poderia juntar-se-lhe. E assim foi, em 1968 Olinda Gil, então com cinco anos, viajou para Moçambique na companhia da mãe e dos irmãos, recordando ainda hoje essa chegada, “o calor, e o deslumbramento que foi descobrir as paisagens de Moçambique, e sobretudo as praias. Fomos viver para Nacala, no norte de Moçambique, distrito de Nampula, à beira-mar. É uma cidade que tem umas praias famosas, entre as quais a de Fernão Veloso .”
Nacala, Natal de 1968.
Tempos de felicidade, uma fase de ouro da vida da família, em grande medida devida às qualificações do pai de Olinda, que depressa viria a abrir a sua própria empresa de serviços de contabilidade. “As colónias precisavam de quadros qualificados, de modo que muita gente que tinha algumas habilitações – na altura bastava ter o antigo quinto ano dos liceus para se ser bancário, contabilista ou professor – foi-se embora, e Portugal Continental ficou com falta dessas pessoas com uma melhor preparação. Se Portugal já era miserável, com a partida dessa gente mais qualificada, ainda ficou pior. Em África ganhava-se bem e vivia-se muito bem, era normal que os portugueses quisessem “emigrar” para as colónias. No continente não havia horizontes. Mais tarde, o meu pai abriu uma loja de artesanato indígena (loja e galeria de arte) em Nacala, que aliás se tornou bastante conhecida. Muita gente recorda ainda hoje essa loja, onde se vendia arte africana, máscaras, estátuas, artesanato em marfim, em prata. Era também ali que os militares compravam as recordações para a família quando acabavam as comissões.”
Irmãos e primos de Nacala.
Recordação particularmente grata da infância de Olinda Gil era a das viagens que a família fazia a Portugal durante as férias escolares. Longas travessias oceânicas a bordo dos navios Angola e Moçambique, por exemplo, viagens que demoravam um mês, com escalas em várias cidades, caso de Durban e Cape Town, onde, no início dos anos 70, “já havia centros comerciais de vários andares com escadas rolantes e muitas lojas. Esses barcos saíam do porto de Nacala e paravam na Cidade da Beira, em Lourenço Marques, em Durban (onde me lembro de haver já então um grande oceanário), em Cape Town, em Moçâmedes, no Lobito, em Luanda, em S. Tomé e Príncipe e finalmente na Madeira. Eram navios enormes, onde havia tudo, piscina, um parque infantil, lojas, cabeleireiros, verdadeiros hotéis flutuantes. Para as crianças aquilo era um sonho.”
Em Nacala, Olinda Gil frequentou a pré-primária, fez toda a escola primária e teve aulas de patinagem e de natação – aprendizagens invulgares para crianças portuguesas da sua geração, que evidenciam o desenvolvimento da sociedade moçambicana quando comparada com a de Portugal Continental dessa época. Na Covilhã, a que Olinda e os seus irmãos chegaram no final de 1974, as crianças não faziam desporto; e as raparigas não andavam de calções. “ As primeiras crianças/adolescentes a andarem de bicicleta e de calção na nossa rua fomos nós, nunca ninguém tinha visto crianças naqueles preparos. Achavam aquilo um escândalo, andarmos a mostrar as pernas (como se fosse esse o objectivo) e a andar de bicicleta. Era uma sociedade muito moralista, a portuguesa da época.”
Mas para além desse choque societal, outros ainda estavam reservados à então pequena Olinda. Em Moçambique, tinha a certeza de estar em Portugal: “Na escola havia mapas e cartazes do Estado Novo onde estava escrito que ali (Moçambique) era Portugal. Portugal ia do Minho a Timor. Mas de repente deixámos de ser portugueses, e em Portugal mandavam-me para a minha terra e chamavam-me preta, a mim!, que era branquinha, sardenta e arruivada e que estava convencida de que Portugal era a minha terra. Como éramos crianças, conseguimos adaptar-nos. Mas os nossos pais ficaram magoados. Sentimos na pele essa mudança de realidade.”
Experiências que marcaram Olinda e a transformaram, como a muitos mais cujos reencontros a Internet tem favorecido: “Encontrei há tempos através da Internet uma amiga que andou comigo na escola de Nacala. Mantive também algumas ligações aos amigos de infância em Moçambique. Gosto de reencontrar essas pessoas. Não quero perder essa memória.”
Actualmente, Olinda Gil vive e trabalha no Alentejo, um lugar que considera ser, de todos os de Portugal continental, o mais parecido com África. A vastidão, o calor, e até mesmo o espírito do povo, evocam África, diz. Continua a sonhar com África e pinta paisagens e figuras da sua infância.
A nossa vida levou uma grande volta com o 25 de Abril, o que para muita gente foi extremamente traumático. Por isso há pessoas que não querem voltar a África. Eu não penso nem sinto assim, mas compreendo essas pessoas, em geral mais velhas. Seja como for, tivemos todos de nos desenrascar, e penso que os retornados passaram esse espírito aos filhos – da necessidade de serem capazes de se virar, de estudar, de trabalhar, de fazer pela vida. Penso que se há pontos em comum entre os retornados, um deles é o espírito de iniciativa, a inovação, uma certa capacidade para arriscar. Foram eles, por exemplo, os introdutores em Portugal dos aviários e das churrasqueiras, ou seja, da produção de frango industrial e do frango de churrasco. Não é que isso seja um legado fundamental dos retornados, mas queria dar um exemplo de uma coisa simples, que entrou no dia-a-dia dos portugueses. Esse espírito de iniciativa, juntamente com as nossas experiências de vida em África, fizeram de nós portugueses diferentes, sim. Por isso, quando encontramos alguém com uma experiência semelhante, mesmo que tenha vivido noutro país africano, sentimo-nos logo compelidos uns para os outros. | OLINDA GIL
“No dia 25 de Abril de 1974 lembro-me de ver os meus pais a ouvir rádio muito compenetrados, e de eu perguntar o que é que se estava a passar, e de eles me dizerem para eu estar calada, porque tinha havido uma revolução na metrópole e eles queriam saber o que estava a acontecer em Portugal. A partir desse dia, começámos a ver no nosso bairro (um bairro de vivendas na parte alta de Nacala) grupos de negros que passavam de noite com archotes, a falar em línguas nativas que nós não conseguíamos entender. Nunca tínhamos visto tal coisa. Nessas noites, o meu pai apagava as luzes de casa, mandava-nos ficar calados e ia buscar armas, enquanto tentava perceber se eles se iam aproximar da nossa casa. De repente deixámos de nos sentir seguros.
Eu costumava ir à padaria sozinha buscar pão lá para casa. A padaria ficava a um quilómetro de distância e uma vez, em Junho de 1974, eu fui buscar o pão, como sempre fazia, e fui abordada por um sujeito negro de 18 ou 19 anos, que me disse que eu ia ser mulher dele, porque quando viesse o Samora Machel os pretos já podiam casar com as brancas. Eu gritei, e as pessoas na padaria começaram a dizer-lhe para me largar. A partir desse dia deixei de ir buscar pão. Antes do 25 de Abril eles não tinham essa liberdade, era impensável aproximarem-se de uma branca, e muito menos agarrarem-na com aqueles propósitos. A vida mudou. Nacala tinha um porto onde nós estávamos habituados a ver os militares portugueses, mas a partir de certa altura deixámos de os ver, desapareceram. O Estado português deixou de existir.
Até que um dia, em Dezembro de 1974, fomos informados que tínhamos 24 horas para ir embora e que cada pessoa só tinha direito a transportar 20 quilos de bagagem. A minha mãe, com 5 filhos, teve direito a 100 quilos de bagagens, o que não era suficiente para trazer tudo, claro, e por isso as mobílias ficaram para trás. Mesmo assim ela conseguiu trazer livros, artesanato e roupas, numas arcas. Eu trouxe a parte que rendia mais dinheiro, e de que podíamos vir a precisar – no aeroporto não revistavam as crianças, e por isso a minha mãe enfiou umas coisas em prata e em ouro nas cabeças de umas bonecas, que eu trouxe num saco que ninguém revistou.
Mas até conseguirmos um avião passaram-se vários dias, porque não havia voos que chegassem. Estivemos mais de uma semana à espera, na Beira, por um avião da TAP para nos levar para Portugal. Fomos para o Grande Hotel da Beira, onde ficámos um ou dois dias, mas depois a minha mãe percebeu que aquilo podia prolongar-se e fomos para uma pensão, porque não havia dinheiro para ficar tantos dias num hotel caro. E a verdade é que só conseguimos embarcar por cunha. A minha mãe conhecia umas pessoas importantes na Beira, gente natural da nossa terra, e foi assim que foi possível sair de Moçambique, numa altura em que toda a gente começou a fugir de lá, sobretudo as mulheres e as crianças.
Chegámos a Portugal pelo Natal e na Covilhã estava a nevar. O frio foi um choque, e nós vínhamos com roupas de Verão. Um tio nosso foi-nos buscar ao aeroporto e seguimos para a Covilhã. A minha avó tinha uma casa lá, que nos cedeu, sem pagar renda. Os nossos familiares contribuíram com coisas, móveis, televisão, uma máquina de lavar, etc, e foi assim que conseguimos os mínimos para recomeçar. A minha mãe pediu ajuda ao IARN. Lembro-me de eles nos darem leite em pó, manteiga, etc… Foram tempos complicados mas houve quem ficasse pior. Na zona da Serra da Estrela havia um grande sanatório para tuberculosos que estava abandonado, e que serviu de alojamento a muitas centenas, talvez milhares, de retornados, que lá ficaram a viver durante vários anos. Essas famílias também eram apoiadas pelo IARN, tinham direito a umas senhas de alimentação.
Um outro apoio muito importante nessa altura difícil foi o da Igreja Católica. Quem nos dava roupas era o padre, que fazia recolha de roupa na igreja para dar aos retornados. Lembro-me de a minha mãe ir buscar sacos de roupas ao padre, roupas quentes que nós não tínhamos.
Muitos maridos mandaram as mulheres e os filhos à frente e ficaram mais uns tempos nas colónias. O meu pai ficou em Moçambique até 1977, já com a FRELIMO instalada no país. Penso que ele terá tentado salvar as nossas coisas, mas o novo regime nacionalizou tudo, e toda a propriedade privada ficou perdida. Mesmo assim, ele trouxe documentos das casas e das lojas que tinha, pensando um dia mais tarde ser ressarcido. A minha mãe ainda hoje mantém esses comprovativos de propriedade. Com as poucas coisas que conseguiu vender, o meu pai abriu um café-restaurante, e todos fomos trabalhar para lá a partir dos 13 anos. Vínhamos da escola e íamos atender os clientes do café.
Naquela altura, nos anos a seguir ao 25 de Abril, as pessoas, e principalmente as de esquerda, começaram a acusar os antigos colonos de terem andado a explorar os pretos. Mas esqueceram-se que aqui havia uma diferenciação social, um grande fosso, que aliás está outra vez a acentuar-se cada vez mais. Essas pessoas falavam de realidades que não percebiam. Bastava-lhes saber que tínhamos tido criados pretos para nos insultarem. É verdade que em Moçambique todo o branco tinha criados pretos. Era muito barato, mas era pago, e portanto não era trabalho escravo. Eles precisavam imenso de trabalhar. Semanalmente nós tínhamos gente à porta a pedir trabalho. Ofereciam-se para arrumar a casa, por exemplo. Nós tínhamos um criado para arrumar a casa, outro para tomar conta das crianças, porque éramos cinco. Esses criados que tomavam conta das crianças eram os chamados mainatos, que olhavam por nós enquanto brincávamos, a colher papaias nas árvores, por exemplo.”
Um dia voltarei a Nacala…
Texto presente no livro “Voltar” de Sarah Adamopoulos
Fontes:

Sem comentários:

Enviar um comentário